Não dá para negar: a atual programação da nossa tv aberta é de péssima qualidade - um festival de mau gosto, salvo raríssimas exceções. A única maneira de reverter este quadro é criando novas regras para a televisão brasileira. O problema, porém, ao propor "regras para a tv", é que boa parte da opinião pública e dos políticos (além, claro, das próprias emissoras de televisão) defenderiam a tese de que este é um caminho anti-democrático, um retorno à censura. A população torceria o nariz. Mas será que essas regras realmente caracterizariam um "retorno à censura"?
Programas como A Tarde é Sua, SuperPop e Malhação representam o que há de pior na televisão brasileira
Novas regras, medida democrática. De fato é preciso preservar (e fazer avançar) as liberdades democráticas em nosso país. Contudo, democracia não é sinônimo de "pode tudo". Todo país precisa de regras capazes inclusive de garantir e ampliar a democracia. Por esta razão, a televisão brasileira precisa urgentemente de cotas de compromisso. Cada emissora deveria se comprometer a usar parte da sua programação para transmitir programas socialmente responsáveis. Confesso que, leigo em questões de legislação, não sei até que ponto já são exigidos dos canais de televisão comprometimentos assim. Provavelmente as leis referentes à tv fazem recomendações deste tipo, sem entretanto cobrar efetivamente que tais compromissos sejam assumidos. O que de toda forma parece-me claro é que, se existem recomendações ou mesmo cobranças neste sentido, possuem impacto irrisório sobre o produto final. Isto não deve significar que o Estado rigorosamente idealize e controle as produções advindas destas cotas de compromisso (o que inevitavelmente traria o risco de partidarização da tv); o que ele deve é garantir que os canais abertos dediquem uma parcela da sua grade horária à programas comprometidos com a cultura, com a educação, com a criança, com a inclusão social, com uma discussão política mais aprofundada, com debates sobre questões socialmente relevantes etc. As emissoras abertas poderiam, inclusive, repartir estes compromissos. Problema: ao produzir programas fundados nesta proposta, como iríamos decidir quais seriam adequados à ela e quais não? Bem, estes critérios teriam de ser discutidos com mais profundidade. Talvez uma comissão de Ética - temperada com professores, acadêmicos, especialistas na área de comunicação, psicólogos, filósofos, sindicatos, ongs etc - pudesse fazer tal julgamento (o que parece muito mais coerente e democrático do que mera sujeição à decisão de apenas seis donos de emissora). É uma sugestão, outras poderiam ser levantadas. De toda forma, com isso nós não estaríamos destruindo os espaços de livre-criação daqueles que fazem a tv ou banindo os programas que buscam entreter - mas sim equilibrando, diversificando a televisão, impedindo que o entretenimento (vulgar, na maioria dos casos) tenha a hegemonia que atualmente possui. Permitiríamos assim o acesso do público à um outro universo, em que houvesse um contraste harmonioso entre diversão, humor, informação, ludicidade e responsabilidade social. Em outras palavras: fazendo "mais democracia", e não "menos democracia". Uma televisão não ser controlada ou censurada pelo Estado não garante que ela seja essencialmente democrática; o público hoje, na verdade, está submetido às opções (pouco variadas) oferecidas por meia dúzia de empresários intocáveis que comandam os canais abertos e que visivelmente estão objetivando apenas audiência e lucro. O que verdadeiramente lhes interessa é que seus programas - independentemente de qualidade - tenham audiência; assim, poderão cobrar mais dinheiro de seus anunciantes. Por isso se faz uma programação tão nivelada pelo baixo nível cultural da grande maioria da população (na qual, sim, incluo também as classes média e alta, que não deixam de ser incultas e irreflexivas), e não uma programação cujo fim fosse fazer o espectador se superar, se "elevar". Segundo Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da USP, em sua obra O Afeto Autoritário, "o setor de política de comunicação se tem caracterizado, infelizmente, por uma inquietante omissão do poder público". A televisão aberta, que deveria constrastar distração e elevação, diversão e reflexão, apenas distrai, e da pior maneira possível. E aí mesmo naqueles momentos em que poderíamos - em tese - pensar (com os telejornais, por exemplo), acabamos de certa maneira não o fazendo. Acompanhamos os noticiários na tv também como uma forma de distração. Telejornal no Brasil é muito mais sinônimo de distração mórbida do que de informação; eles pouco conseguem fazer com que nós compreendamos mais profundamente a situação econômica e social do país. Neste sentido, apenas reforçam o espírito de alarmismo, e aquele sentimento muito difundido de que "tudo está uma droga e nada tem solução". Falta ao público a capacidade de reflexão em cima da notícia, e falta ao nosso telejornalismo a capacidade de suscitar essa reflexão.
Mesmo os telejornais brasileiros se mostram incapazes de suscitar reflexões pertinentes
Tudo isto dá à nossa televisão um caráter extremamente ditatorial que - por não ser diretamente advindo do Estado (embora indiretamente sim, porque o Estado é também responsável por este "quadro" que torna nossa população tão vulnerável e passiva diante de uma programação de tão péssima qualidade) - parece não nos incomodar. Muitos brasileiros não encontrariam dificuldades em constatar que uma televisão inteiramente controlada pelo Poder Executivo não é democrática (nosso recente passado político nos ensinou os males que podem ser causados por um Estado autoritário); nos esquecemos, porém, que uma tv inteiramente controlada por um empresário também não o é, viabilizando-se aí aquilo que o sociólogo francês Pierre Bordieu acertadamente chamou de "censura invisível". Nós precisamos de um caminho intermediário: nem um "pode tudo", nem um "não pode nada". O "pode tudo" é tão prejudicial e tão ditatorial quanto o "não pode nada". No "pode tudo" prevalece a ditadura do mesmo. Um exemplo: a igreja da Graça, do pastor evangélico Romildo Ribeiro Soares, possui hoje horários em várias emissoras de televisão. Isso não é uma afronta à democracia? Não haveria aí uma distribuição injusta do espaço, calcada apenas na lei do "quem pode pagar, leva"? Uma tv democrática não deveria ser aquela em que os membros de outras igrejas, e mesmo de outras religiões, pudessem aparecer e, assim, apresentar suas cosmovisões de mundo em condições de igualdade? Se não existe uma religião oficial no Brasil, não deveria então haver limitações para este tipo de "expansionismo"?
Com a contribuição financeira dos fiéis da sua Igreja da Graça, o pastor Romildo Soares acumula cada vez mais horários na televisão
Além das cotas de compromisso, é preciso também repensar a distribuição do espaço, implementando restrições necessárias que contenham os abusos - não apenas no campo da religião - e permitam que a televisão se desenvolva com diversidade. O mito da "liberdade de mercado", hoje tão inconscientemente difundido na mentalidade da população, nos faz ter ojeriza à idéia de um empresário sendo minimamente limitado por regras e leis. Porém, à medida em que, sem limitações, impõe-se arbitrariamente (e com nivelação por baixo) o que 180 milhões de pessoas devem assistir na televisão, esta "liberdade de mercado" acaba sendo um obstáculo ao desenvolvimento da liberdade intelectual de cada cidadão. Deve-se lembrar que, mesmo quando privado, um canal aberto é sempre voltado para toda a população e que - assim sendo - a tv não pode ser eximida de assumir responsabilidades para com este público cujos valores e opiniões ela tanto influencia.
* Fica como dica de leitura os tópicos A Omissão do Poder Público, A tese liberal contrária à censura e O uso do liberalismo econômico contra os deveres constitucionais da comunicação de massas, presentes no livro O Afeto Autoritário - Televisão, Ética e Democracia, de Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo.
Rafael Issa é graduando em Filosofia pela Universidade de São Paulo e formado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo.
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