domingo, 10 de julho de 2011

Relação entre poesia e verdade na visão de Marcel Detienne

Marcel Detienne, historiador belga com forte influência
antropológica.
A relação entre poesia e verdade na visão de Detienne é, a princípio, esclarecedora na medida em que,   segundo ele, a poesia se auto-afirma enquanto verdade quanto esta é "sustentada" pela autoridade das musas que são aquelas que retransmitem as palavras ditas pelos deuses aos homens. Entretanto, antes de esclarecer melhor esta relação colocada pelo autor, faz-se necessário compreender o que significa e, principalmente, a importância do conceito "verdade", em outras palavras, o que os gregos entendiam como verdade? Após esta compreensão, deve-se também esclarecer o fundamento sobre o qual  verdade se assenta, fundamento esse representado pela tríade: poeta-musas-memória.
Primeiramente devemos destacar que, segundo Detienne, a ideia de verdade contemporânea é "...inseparável das idéias de demonstração, verificação e experimentação." ¹. Nota-se que o caminho para se chegar ao conceito de verdade para os gregos devemos - necessariamente - nos afastar do conceito moderno de verdade que possui estas três características apontadas pelo autor. Para ele, os primeiros a procurar estabelecer o que seja a verdade são os filósofos Parmênides, Platão e Aristóteles quando estes se separam da influência mítica. Inicialmente, o conceito verdade é compreendido como "desvelamento" de uma obscuridade provocada justamente pelo mito; a verdade caracteriza-se como Alétheia.
Convém destacar que, este conceito de verdade enquanto Alétheia, está intimamente ligado a uma concepção religiosa. O poema de Parmênides intitulado "As Duas Vias", as musas conduzem o filósofo a um caminho que, se percorrido, irá ser-lhe revelado o conhecimento verdadeiro. Este período é caracterizado, segundo o autor, como uma "Pré-história da alétheia filosófica"², período esse que dá início ao desenvolvimento deste conceito de alétheia para um produto da razão.
Entretanto, esta "pré-história" não deve ser concebida como um período "sombrio" ou "inexpressivo". Esta "pré-história" encontra-se em um contexto em que a tradição oral era a única fonte de transmissão de qualquer verdade. Logo, a importância dos poetas não pode - nem deve - ser diminuída ou desprezada, pois suas palavras, segundo Detienne "... é solidária a duas noções complementares: a Musa e a Memória"³ . São elas, as Musas, que acabam reforçando a importância do poeta, pois, enquanto "palavra cantada", fazem  com que os poetas possam transmitir as glórias do passado, a música e a dança, sendo que estas duas últimas são aquelas que trazem vida a poesia.
São as Musas que, como educadoras, ensinam e mostram as principais características que deve possuir um poema: disciplina, improvisação, concentração e, principalmente, a sedução que irá encantar o ouvinte a fim de que se sinta atraído por suas palavras e as guarde enquanto verdade. Como filhas da memória (Mnemosýne), conforme Hesíodo cita em sua Teogonia, as Musas "relembram" o poeta, tornando-o um veículo de transmissão da palavra dos deuses aos homens, palavra essa que deve ser levada principalmente na impossibilidade de se guardar tal conhecimento ou mensagem através da escrita; o poeta torna-se o "livro" que deve ser lido por quem o encontra.
Vale lembrar que a Memória da qual surgem as musas não devem se confundidas ou sequer comparadas com o conceito que temos hoje por memória. No contexto em questão, ela se caracteriza pela capacidade de dizer o que foi, o que é e o que será. Além do mais, nem todos possuem-na; por serem intermediários das Musas, os poetas são os únicos a possuí-la. Assim, podemos afirmar que a palavra do poeta tem o poder de unir o mundo humano ao divino através da simbologia das palavras.
Esta capacidade que possui a poesia é vista por Detienne como uma "dualidade", pois ela eterniza as façanhas dos homens e, principalmente dos deuses. Esta dualidade reforça o caráter de verdade da palavra poética, é ele que, na verdade, irá determinar qual o ato a ser louvado, eternizado. Portanto, não depende ou não se encontra nas mãos dos homens o poder de eternizar-se mesmo sendo os protagonistas de suas ações; é o poeta que, enquanto portador da verdade, identifica quais atos são considerados pelos deuses como eternos.
Percebe-se que a verdade, em sua relação com a poesia somente pode ser encontrada nno âmbito religioso. Ela não pode ser definida como conceito, mas encontra-se ligada aquele a pronuncia em, portanto, não é uma palavra qualquer, ao contrário, por ser divina ela é eficiente, imediata e irrevogável. O adjetivo de "Mestre da Verdade" (p. 23) - que aliás dá nome a sua obra - que Detienne reconhece no poeta pode ser compreendido sob estes aspectos apresentados neste trabalho. Neles, a poesia se confunde com a própria verdade: ela é recebida, admirada e nunca contestada. Por isso, enquanto estiver ligada a palavra do poeta, a poesia será neste contexto, sempre uma verdade.

BIBLIOGRAFIA

DETIENNE, Marcel. Os Mestres da Verdade. Trad. Andréa Daher. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 147 p

*As referências 1,2 e 3 destacadas neste texto encontram-se respectivamente nas pgs 13, 14 e 16.



terça-feira, 28 de junho de 2011

O problema do "não-ser" em Parmênides - Conclusão


Agora que sabemos as características principais daquilo que <é>, resta-nos procurar responder as questões elaboradas no início deste trabalho sobre aquilo que . Kirk, Raven e Schofield iniciam a busca pela resposta dos questionamentos colocados, destacando a impossibilidade de se conhecer aquilo que não existe. Entretanto, uma afirmação posterior feita por eles esclarece esta questão que, a princípio, parece ser insolúvel: “... impossível é, segundo parece, conhecer ou dar a conhecer o que não é uma coisa ou outra, o que não possui atributos e não tem predicados verdadeiros seus.”(KIRK, p. 256) O problema, portanto, ao procurar entender aquilo que , é justamente em estabelecer que este não é isto ou aquilo, sem características próprias e, por este motivo, incognoscível a qualquer pessoa. No entanto, outra característica apontada pelos autores sobre aquilo que , e que fornece nossa informação mais valiosa, se baseia no fato de que este não nasce nem morre. Tal afirmação é retirada do próprio Parmênides, como se segue: “... Não te permitirei que digas ou que penses a partir do que não é: pois é indizível e impensável o que não é... Por isso a Justiça jamais soltou as grilhetas para lhe permitir nascer ou perecer, antes as segura firmemente.”(KIRK, p. 260)
Todas estas conclusões, no entanto, ainda não oferecem a segurança necessária para as questões propostas no início deste trabalho sejam solucionadas. E isto acontece porque o caminho que proposto pela deusa ainda precisa de um melhor esclarecimento. No entanto, a pergunta proposta pelos autores sobre a função do verbo estin em nossa tradução já possui resposta: aquilo que <é>; necessariamente deve existir e, mais, mesmo que nesta realidade não existe nada que se assemelhe ao que <é>; este participa de tudo o que existe, assim tudo o que é só é devido a esta participação daquilo que <é>.
Logo, aquilo que em nada participa, pois não nasce e nem virá a nascer. Aparentemente, tal conclusão não resolve as questões propostas, entretanto, veremos que o que os autores classificam como O erro dos mortais (KIRK, p. 257) nos dão a resposta que precisamos e corrobora o caminho que é proposto pela deusa. A deusa apesar de advertir sobre a necessidade de escolher o caminho que <é>, no entanto, não é capaz de obrigar alguém a segui-lo. E é neste momento que o caminho daquilo que surge como opção, não como se ele realmente existisse – pois já vimos que este não pode existir, visto que ele nunca nasceu – mas como resultado da indecisão daquele que não escolheu o verdadeiro caminho. É na indecisão que “surge” o caminho que : “Isto te ordeno que ponderes, pois é este o primeiro caminho de investigação, do qual eu te afasto, logo, pois daquele, em que vagueiam os mortais que nada sabem, gente dicéfala...que julgam que ser e não ser são e não são a mesma coisa.” (KIRK, p. 257)

          Para quem não sabe qual o verdadeiro caminho, não existe diferença entre aquilo que <é> e o que < não é>, esta não diferenciação iguala ambos os caminhos, o que é inaceitável para a deusa. Não deve existir a possibilidade do que seja, pois é forçoso – como afirma a deusa – que ele não seja, pois ele nada é.  Mas, se a escolha pelo verdadeiro caminho não é feita, surge não somente o caminho daquilo que , mas ainda um terceiro caminho que é o da indecisão, da ignorância sobre aquilo que <é>.

domingo, 26 de junho de 2011

O problema do "não-ser" em Parmênides - Parte 1

Compartilho com vocês, caros leitores, este texto que é fruto de um trabalho realizado para a pós-graduação que curso em Filosofia Antiga. É um texto essencial para uma inicial compreensão do poema de Parmênides intitulado "As duas vias". O problema destacado neste texto é justamente a possibilidade de existência de um caminho que, a princípio não existe, ou seja, o caminho do "não-ser".Boa leitura! 

O poema de Parmênides traz consigo características importantes sobre a questão do que é realmente a verdade e qual o tipo de decisão que deve ser tomada ao se deparar com o problema do que ela –  no caso a verdade – seja, as suas características e como identificá-la em meio a multiplicidade de opiniões sobre a mesma. Parmênides em seu poema esclarece qual a forma de se busca-la e qual a sua principal característica: o caminho da verdade <é> e para encontrar este caminho deve-se afastar do que . “Anda daí e eu te direi (e tu trata de levares as minhas palavras contigo, depois de as teres escutado) os únicos caminhos da investigação em que importa pensar. Um, que é e que lhe é impossível não ser... o outro, que não é e que forçoso se torna que não exista...” ( KIRK, p. 255)
E é justamente o grande problema que surge da afirmação acima que pede um maior esclarecimento: Como o caminho que não pode existir se, ao declara-lo eu o torno existente, ainda que de forma conjectural? Esta pergunta se torna ainda mais angustiante se levarmos em conta que a deusa afirma anteriormente a existência de dois caminhos, surgindo assim um questionamento: como algo que possa ser caracterizado como um caminho, mesmo que não possa ser seguido? Afinal, se ele é realmente um caminho existe a possibilidade de se seguir por ele? Assim, nosso trabalho terá como objetivo a resolução deste pequeno, porém importante problema do poema de Parmênides que é justamente compreender esta presença-ausência do caminho do .
O início da compreensão dos problemas colocados na introdução deste trabalho acontece se esclarecermos o outro caminho colocado pela deusa, ou seja, o caminho que <é>. Tal investigação se faz necessária até por um motivo lógico: se este caminho <é> sua compreensão torna-se menos trabalhosa e mais esclarecedora visto que começaremos por um caminho que existe e que segundo a deusa, é o que deve ser seguido. Kirk, Raven e Schofield, em sua obra Os filósofos pré-socráticos, também procuram responder e compreender o caminho que para a deusa <é>: “O que é o ‘[aquilo]’ que a nossa tradução acrescentou como sujeito gramatical do verbo estin de Parmênides?”(KIRK, p.255)
O poema de Parmênides traz consigo a resposta para o problema “daquilo que é”: “Nem é divisível, pois que é homogêneo; nem é mais aqui e menos ali, o que o impediria de manter a coesão, mas tudo esta cheio do que é.”(Kirk, p.261)Nota-se que Parmênides em sua demonstração das características do que <é>, ressalta em primeiro lugar tudo aquilo que ele “não é”. Tal  demonstração se assemelha a de joão Escoto Erígena que, para afirmar e comprovar a existência de Deus, caracterizava primeiro tudo aquilo que Deus não é,  como bem destaca Etienne Gilson, em sua obra A filosofia na Idade Média:
“Então se diz que “(...) Deus não é nem substância, nem quantidade, nem qualidade, nem nada que se inclua em qualquer categoria”“.(GILSON, p.250)
Entretanto, há uma pequena, porém importante, diferença entre estas duas “teologias negativas” a princípio implícitas no pensamento de ambos os autores; ao dizer tudo aquilo que o que “aquilo que é” não é, ele logo em seguida faz afirmações positivas sobre “aquilo que é”. O que isso pode significar? A princípio, tais afirmações podem ser entendidas como formas de se compreender o que <é> através de exemplos existentes na própria realidade, isto é, Parmênides age como um professor diante de alunos perplexos diante de um pensamento tão complexo, se utilizando de exemplos palpáveis em uma realidade limitada, que nasce e morre, ou seja, onde todas as coisas possuem um início, um meio e consequentemente um fim.  E a partir destas afirmações de Parmênides podemos já estabelecer que aquilo que <é> não se assemelha em nada que exista neste mundo ou nesta realidade, pois, tudo o que vemos possui uma limitação, uma determinação e que tudo o que existe provém daquilo que <é>. Vemos assim surgir características daquilo que <é>: algo que não possui limite, início ou fim, ele simplesmente <é>.
Continua...

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Virtú x Fortuna: Uma visão além da política sobre Maquiavel


A reflexão que abre as muitas que virão neste ano de 2011 vêm em um momento bastante propício, afinal, a política pelo menos para nós brasileiros, neste ano de 2011 traz esperança, visto que pela primeira vez nosso país terá em seu cargo máximo uma mulher. Ainda mais quando vimos uma disputa eleitoral marcada não por boas promessas ou ideias novas que deixassem a nós eleitores confusos por não saber escolher qual candidato votar; pelo contrário, a religião – mais precisamente a questão do aborto – foi o que decidiu esta conturbada eleição. Não que ela deva ficar de lado no que diz respeito à política, principalmente quando o tema dizia respeito à vida de cidadãos brasileiros que ainda na barriga de suas “mães” são covardemente mortos com o argumento contraditório e enganoso de ser “dona” de seu corpo, o problema é que virou um grande círculo o tema religioso deixando de lado temas de igual relevância, como a educação e saúde que tiveram sua importância diminuída se comparada a uma acalorada discussão que houve referente ao tema, como se a falta de educação e saúde também não dizimasse pessoas.
Há pelo menos uma semana, li uma reportagem em que a presidente eleita mandou retirar de seu gabinete o crucifixo e a bíblia, como símbolos de um estado laico. A pergunta que me veio a mente foi que em suas visitas a cristãos sejam eles católicos ou protestantes, e mesmo em seu programa político onde ela afirmava sua crença em Deus, ela teria coragem de dizer que tomaria tal atitude? Mas o pior de tudo foi o sentimento de revolta que se apoderou de mim não porque sou cristão, muito pelo contrário, a revolta foi por saber quanto tempo se perdeu em uma discussão que sabia só tem um valor para a conquista de votos. Maquiavel, em sua obra O príncipe tem muito a oferecer nesta reflexão, visto que ele mostra-nos como a relação entre a virtu e a fortuna é de suma importância em um processo eleitoral, visto que é preciso vender uma imagem ao povo para que esta imagem seja eleita, pois o que ele – ou ela – é em sua essência descobriremos aos poucos.
Dizer que Maquiavel é um pensador político é, no mínimo, um desrespeito ao pensador e sua obra visto que ele vai muito além de uma perspectiva política ao descrever normas para o príncipe, pois ele se utiliza de historiadores clássicos gregos além de contrapor-se a um pensamento idealista-platônico, quando reflete não sobre um estado possível ou imaginário, mas sim, segundo Maria Tereza Sadek*: “... examinar a realidade tal como ela é e não como se gostaria que ela fosse.” Ou seja, Maquiavel examina o Estado tal como é, seus problemas e defeitos, para formular uma resposta para que este funcione de maneira correta, sempre levando em consideração a natureza humana.
Para corroborar o que digo, analisemos um trecho de sua obra O príncipe:

“É, porém, no principado novo que estão as dificuldades... É que os homens gostam de mudar de senhor, julgando melhorar... Isto por sua vez deriva da natural e comum necessidade de ofender aqueles de quem nos tornamos príncipe novo (grifo meu)...” (Capítulo III)


Vemos que Maquiavel ao analisar a dificuldade que os príncipes encontram quando conquistam um novo estado, entende que a dificuldade inicial origina-se não na nova forma de governo que estava por vir ou nos impostos que este governo iria criar, mas, em uma incidência natural de todo ser humano em ofender ou recusar um governante que lhe seja estranho.
Isto posto podemos retomar a reflexão entre a virtu e a fortuna em um processo eleitoral. Para Maquiavel a noção de fortuna que pairava o pensamento grego clássico foi desfigurada com o advento do cristianismo, pois se para os gregos a fortuna era vista como uma deusa boa e que para possuir tudo aquilo que ela tinha para oferecer era necessário a virtú, isto é, em troca de fama, glória e riqueza os gregos ofereciam toda a sua coragem e virilidade para seduzi-la e posteriormente receber o que deseja. Com o cristianismo e seu pensamento de humildade esta noção de fortuna perde seu espaço, segundo o pensamento cristão a fortuna não tem o poder de oferecer a tão sonhada riqueza e glória, muito pelo contrário, quanto mais o homem se aproxima destes bens mais será infeliz e pobre, não para o mundo que é mutável, mas sim para Deus, a fonte de toda felicidade. Desta forma, tais bens tornam-se secundários e submetidos ao destino de cada homem.

No entanto, Maquiavel adere a concepção grega, onde a fortuna esta submetida a virtu, ou seja, o príncipe que deseja honra, glória, riqueza e, principalmente a manutenção de seu reinado deve possuir  coragem e saber utilizar a força. Porém, como bem destaca Maria Tereza Sadek: “Não se trata mais apenas da força bruta, da violência, mas da sabedoria no uso da força, da utilização virtuosa da força”. A sabedoria deve acompanhar o príncipe, sabendo fazer uso da força no momento necessário, impondo não o medo, mas, o respeito de seus concidadãos.


Voltando aos nossos dias, a questão religiosa que acabou se tornando a minerva destas eleições, nossa presidente agiu de forma maquiavélica. Mas, isso quer dizer que ela tenha agido de forma má, ao contrário, a referência é a forma com que Maquiavel agiria: agradando ao povo dizendo que era totalmente contra o aborto, quando sabemos que isso não é verdade, ela agiu segundo a virtú do pensador florentino, percebeu que a maioria que a iria eleger precisava de uma imagem, ainda que ela não dure muito, mas, para a política de Maquiavel imagem é tudo. Não seria neste caso uma traição ao povo que a elegeu? Não. Esta negativa quer dizer que como o Estado e sua política não possuem os freios morais da religião, o bem do Estado será colocado – ainda que infelizmente para os cristãos – a frente de qualquer concepção religiosa, ainda que ela tenha alguma influência.
Portanto, se alguém pensar que escolheu errado ao votar em Dilma, tenha calma. O candidato José Serra iria agir da mesma maneira, como fez em São Paulo vendendo uma imagem de candidato moderno e preocupado com as camadas mais pobres deste país, pura imagem.
Maquiavel tornou-se um pensador clássico porque suas ideias não perdem o valor, tornando a leitura de O príncipe cada vez mais atual e de diferentes interpretações. Caracterizar ele ou qualquer pessoa como maquiavélico devido a sua doutrina, comprará briga com pensadores de alto nível como Rousseau onde afirmava: “ Maquiavel, fingindo dar lições aos ricos, deu grandes lições ao povo”. É possível esta interpretação da leitura de O príncipe, entretanto, o que posso afirmar, em minha modesta opinião, é que se ele realmente desejava dar lições ao povo sobre os métodos de seus governantes, o fez através de seus comentadores, pois acredito que este não era e nunca foi seu objetivo.

* Sadek, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtú. 

sábado, 8 de janeiro de 2011

A TODOS OS AMIGOS LEITORES DESTE BLOG

Estarei retomando as atividades neste blog neste mês de janeiro! Desculpem a ausência, mas garanto que ele voltará ainda melhor!!
Feliz 2011!!!!

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O Banquete ( O amor na ótica de Platão)

Caros alunos do 3° ano do colégio CNSR, apesar de ser um pouco longo, este trecho do livro mostra-nos que Platão procura compreender o amor como desejo - de beleza, imortalidade, sabedoria - e tambem como um processo de elevação da alma que busca a perfeição.


É um tanto longo de explicar, disse ela; todavia, eu te direi. Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá.

Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio - pois já é -, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso.

- Quais então, Diotima - perguntei-lhe - os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes?

É o que é evidente desde já - respondeu-me - até a uma criança: são os que estão entre esses dois extremos, e um deles seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. E a causa dessa sua condição é a sua origem: pois é filho de um pai sábio e rico e de uma mãe que não é sábia, e pobre. É essa então, ó Sócrates, a natureza desse gênio; quanto ao que pensaste ser o Amor, não é nada de espantar o que tiveste. Pois pensaste, ao que me parece a tirar pelo que dizes, que Amor era o amado e não o amante; eis por que, segundo penso, parecia-te todo belo o Amor. E de fato o que é amável é que é realmente belo, delicado, perfeito e bem-aventurado; o amante, porém é outro o seu caráter, tal qual eu expliquei.

E eu lhe disse: - Muito bem, estrangeira! É belo o que dizes! Sendo porém tal a natureza do Amor, que proveito ele tem para os homens?

Eis o que depois disso - respondeu-me - tentarei ensinar-te. Tal é de fato a sua natureza e tal a sua origem; e é do que é belo, como dizes. Ora, se alguém nos perguntasse: Em que é que é amor do que é belo o Amor, ó Sócrates e Diotima? ou mais claramente: Ama o amante o que é belo; que é que ele ama? [ ...]

São esses então os casos de amor em que talvez, ó Sócrates, também tu pudesses ser iniciado; mas, quanto à sua perfeita contemplação, em vista da qual é que esses graus existem, quando se procede corretamente, não sei se serias capaz; em todo caso, eu te direi, continuou, e nenhum esforço pouparei; tenta então seguir-me se fores capaz: deve com efeito, começou ela, o que corretamente se encaminha a esse fim, começar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos, e em primeiro lugar, se corretamente o dirige o seu dirigente, deve ele amar um só corpo e então gerar belos discursos; depois deve ele compreender que a beleza em qualquer corpo é irmã da que está em qualquer outro, e que, se se deve procurar o belo na forma, muita tolice seria não considerar uma só e a mesma a beleza em todos os corpos; e depois de entender isso, deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho; depois disso a beleza que está nas almas deve ele considerar mais preciosa que a do corpo, de modo que, mesmo se alguém de uma alma gentil tenha todavia um escasso encanto, contente-se ele, ame e se interesse, e produza e procure discursos tais que tornem melhores os jovens; para que então seja obrigado a contemplar o belo nos ofícios e nas leis, e a ver assim que todo ele tem um parentesco comum, e julgue enfim de pouca monta o belo no corpo; depois dos ofícios é para as ciências que é preciso transportá-lo, a fim de que veja também a beleza das ciências, e olhando para o belo já muito, sem mais amar como um doméstico a beleza individual de um criançola, de um homem ou de um só costume, não seja ele, nessa escravidão, miserável e um mesquinho discursador, mas voltado ao vasto oceano do belo e, contemplando-o, muitos discursos belos e magníficos ele produza, e reflexões, em inesgotável amor à sabedoria, até que aí robustecido e crescido contemple ele uma certa ciência, única, tal que o seu objeto é o belo seguinte.
Tenta agora, disse-me ela, prestar-me a máxima atenção possível. Aquele, pois, que até esse ponto tiver sido orientado para as coisas do amor, contemplando seguida e corretamente o que é belo, já chegando ao ápice dos graus do amor, súbito perceberá algo de maravilhosamente belo em sua natureza, aquilo mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as penas anteriores, primeiramente sempre sendo, sem nascer nem perecer, sem crescer nem decrescer, e depois, não de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora não, nem quanto a isso belo e quanto àquilo feio, nem aqui belo ali feio, como se a uns fosse belo e a outros feio; nem por outro lado aparecer-lhe-á o belo como um rosto ou mãos, nem como nada que o corpo tem consigo, nem como algum discurso ou alguma ciência, nem certamente como a existir em algo mais, como, por exemplo, em animal da terra ou do céu, ou em qualquer outra coisa; ao contrário, aparecer-lhe-á ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, sendo sempre uniforme, enquanto tudo mais que é belo dele participa, de um modo tal que, enquanto nasce e perece tudo mais que é belo, em nada ele fica maior ou menor, nem nada sofre. Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do correto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo. Nesse ponto da vida, meu caro Sócrates, continuou a estrangeira de Mantinéia, se é que em outro mais, poderia o homem viver, a contemplar o próprio belo. Se algum dia o vires, não é como ouro ou como roupa que ele te parecerá ser, ou como os belos jovens adolescentes, a cuja vista ficas agora aturdido e disposto, tu como outros muitos, contanto que vejam seus amados e sempre estejam com eles, a nem comer nem beber, se de algum modo fosse possível, mas a só contemplar e estar ao seu lado. 

Que pensamos então que aconteceria, disse ela, se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o próprio divino belo pudesse ele em sua forma única contemplar? Porventura pensas, disse, que é vida vã a de um homem a olhar naquela direção e aquele objeto, com aquilo com que deve, quando o contempla e com ele convive? Ou não consideras, disse ela, que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando?

Eis o que me dizia Diotima, ó Fedro e demais presentes, e do que estou convencido; e porque estou convencido, tento convencer também os outros de que para essa aquisição, um colaborador da natureza humana melhor que o Amor não se encontraria facilmente. Eis por que eu afirmo que deve todo homem honrar o Amor, e que eu próprio prezo o que lhe concerne e particularmente o cultivo, e aos outros exorto, e agora e sempre elogio o poder e a virilidade do Amor na medida em que sou capaz. Este discurso, ó Fedro, se queres, considera-o proferido como um elogio ao Amor; se não, o que quer que e como quer que te apraza chamá-lo, assim deves fazê-lo.

O homem é um animal político (Aristóteles)

Alunos do 2° ano do colégio CNSR, por favor, baixem este texto para que trabalharmos em sala de aula.

 
“É evidente que a cidade faz parte das coisas naturais, e que o homem é por natureza um animal político. E aquele que por natureza, e não simplesmente por acidente, se encontra fora da cidade ou é um ser degradado ou um ser acima dos homens, segundo Homero (Íliada IX,63) denuncia, tratando-se de alguém: sem linhagem, sem lei, sem lar.
Aquele que é naturalmente um marginal ama a guerra e pode ser comparado a uma peça fora do jogo. Daí a evidência de que o homem é um animal político mais ainda que as abelhas ou que qualquer outro animal gregário. Como dizemos frequentemente, a natureza não faz nada em vão; ora, o homem é o único entre os animais a ter linguagem [logos]. O simples som é uma indicação do prazer ou da dor estando, portanto, presente em outros animais, pois a natureza destes consiste em sentir o prazer e a dor e em expressá-los. Mas a linguagem tem como objetivo a manifestação do vantajoso, e portanto do justo e do injusto. Trata-se de uma característica do homem ser ele o único que tem o senso do bom e do mau, do justo e do injusto, bem como de outras noções deste tipo. É a associação dos que têm em comum essas noções que constitui a família e o Estado.”

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Apologia de Sócrates ( Alunos do 3° ano)


Apologia de Sócrates
(Alunos, perdoem minha falha, ao invés de fazerem uma interpretação do texto, respondam as questões abaixo para entrega na próxima aula!)

XXVI

Ora, é possível que alguém perguntasse: — Sócrates, não poderias viver longe da pátria, calado e em paz? Eis justamente o que é mais difícil fazer e aceitar a alguns dentre vós: Se digo que seria desobedecer ao Deus e que, por essa razão, eu não poderia ficar tranqüilo, não acreditaríeis em mim, supondo que
tal afirmação é, de minha parte, uma fingida ingenuidade. Se,ao contrário, digo que o maior bem para um homem é justamente este, falar todos os dias sobre a virtude e os outros argumentos sobre os quais me ouvistes raciocinar, examinando a mim mesmo e aos outros e, que uma vida sem esse exame não é digna de ser vivida, ainda menos acreditaríeis ouvindo-me dizer tais coisas. Entretanto, é assim, como digo, ó cidadãos, mas aqui não é fácil ser persuasivo.
E, por outro lado, não estou habituado a acreditar que seja digno de algum mal. De fato, se tivesse dinheiro, eu me multaria em uma soma que pudesse pagar, porque não teria prejuízo algum; mas o fato é que não tenho. Só se quiserdes multar-me em tanto quanto eu possa pagar. Talvez eu vos pudesse pagar uma mina de prata; multo-me, pois em tanto.
Mas Platão, cidadãos atenienses, Críton, Cristóbolo e Apolodoro me obrigam a multar-me em trinta minas, e oferecem fiança: multo-me, pois, em tanto, e eles vos serão fiadores dignos de crédito.

Terceira Parte
Sócrates se despede do tribunal

XXVII

Por não terdes querido esperar um pouco mais de tempo,atenienses, ireis obter, da parte dos que desejam lançar o opróbrio sobre a nossa cidade, a fama e a acusação de haverdes sido os assassinos de um sábio, de Sócrates. Porque, quem vos quiser desaprovar me chamará, sem dúvida, de sábio, embora eu não o seja. Pois bem, tivésseis esperado um pouco de tempo, a coisa seria resolvida por si: vós vedes, de fato, a minha idade. E digo isso não a vós todos, mas àqueles que me condenaram à morte. Digo, além disto, mais o seguinte a esses mesmos: É possível que tenhais acreditado, ó cidadãos, que eu tenha sido condenado por pobreza de raciocínios, com os quais eu poderia vos persuadir, se eu tivesse acreditado que era preciso dizer e fazer tudo para evitar a condenação. Mas não é assim. Caí por falta, não de raciocínios, mas de audácia e imprudência, e não por querer dizer-vos coisas tais que vos teriam sido gratíssimas de ouvir, choramingando, lamentando e fazendo e dizendo muitas outras coisas indignas, as quais, é certo, estais habituados a ouvir de outros.
Mas, nem mesmo agora, na hora deste grande perigo, eu faria nada de inconveniente, nem mesmo agora me arrependo de me ter defendido como o fiz; antes prefiro mesmo morrer, tendo-me defendido deste modo, a viver daquele outro.
Nem nos tribunais, nem no campo, nem a mim, nem a ninguém convém tentar todos os meios para fugir da morte. Até mesmo nas batalhas, de fato, é bastante evidente que se pode evitar morrer, jogando fora as armas e suplicando aos que perseguem; e muitos outros meios há, nos perigos
individuais, para evitar a morte quando se ousa dizer e fazer alguma coisa.
Mas, ó cidadãos, talvez o difícil não seja fugir da morte.
Bem mais difícil é fugir da maldade, que corre mais veloz que a morte. E agora eu, preguiçoso como sou, e velho, fui apanhado pela mais lenta, enquanto os meus acusadores, válidos e lépidos, foram apanhados pela mais veloz: a maldade.
Assim, eu me vejo condenado à morte por vós, condenados de verdade, que sois criminosos de improbidade e de injustiça. Eu estou dentro da minha pena, vós dentro da vossa.
E, talvez, essas coisas devessem acontecer mesmo assim. E creio que cada qual foi tratado adequadamente.

XVIII

Agora, pois, quero vaticinar-vos o que se seguirá, ó vós que me condenastes, porque já estou no ponto em que os homens podem vaticinar, quando estão para morrer: Digo-vos, de fato, ó cidadãos que me condenaram, que logo depois da minha morte virá uma vingança muito mais severa, por Zeus, do que aquela pela qual me tendes sacrificado. Fizestes isto acreditando subtrair-vos ao aborrecimento de terdes de dar conta da vossa vida, mas eu vos asseguro que tudo sairá ao contrário.
Em maior número serão os vossos censores, que eu até agora contive, e vós reparastes. E tanto mais vos atacarão quanto mais jovens forem e disso tereis maiores aborrecimentos.
Se acreditais, matando os homens, entreter alguns dos vossos críticos, não pensais bem; esse modo de vos livrardes, não é decerto eficaz nem belo, mas belíssimo e facílimo é não contrariar os outros, mas aplicar-se a se tornar, quanto se puder, melhor. Faço, pois, este vaticínio a vós que me condenastes. Chego ao fim.

XIX

Quanto àqueles cujos votos me absolveram, eu teria prazer de conversar com eles a respeito deste caso que acaba de ocorrer enquanto os magistrados estão ocupados, enquanto não chega o momento de ter de ir ao lugar onde terei de morrer. Ficai, pois, comigo este pouco de tempo, ó cidadãos, porque nada nos impede de conversarmos mais um pouco, enquanto se pode. É que a vós, como meus amigos, quero mostrar que não desejo falar do meu caso presente. A mim, de fato, ó juízes – uma vez que, chamando-vos juízes vos dou o nome que vos convém – aconteceu qualquer coisa de maravilhoso. Aquela minha voz habitual do demônio (daimon = gênio) em todos os tempos passados me era sempre freqüente e se oponha ainda mais nos pequeninos casos, cada vez que fosse para fazer alguma coisa que não estivesse muito bem. Ora, aconteceram-me estas coisas, que vós mesmos estais vendo e que, decerto, alguns julgariam e considerariam o extremo dos males; pois bem, o sinal do Deus não se me opôs, nem esta manhã, ao sair de casa, nem quando vim aqui, ao tribunal, nem durante todo o discurso. Em todo este processo,
não se opôs uma só vez, nem a um ato, nem a palavra alguma. Qual suponho que seja a causa? Eu vo-la direi: em verdade este meu caso pode ser um bem, e estamos longe de julgar retamente quando pensamos que a morte é um mal. E disso tenho uma grande prova: que, por muito menos, normalmente, o meu gênio se me teria oposto, se não fosse para fazer alguma coisa de bem. Passemos a considerar a questão em si mesma, de como há grande esperança de que isso seja um bem.
Porque morrer é uma ou outra destas duas coisas: ou o morto não tem absolutamente nenhuma existência, nenhuma consciência do que quer que seja, ou, como se diz, a morte é precisamente uma mudança de existência e, para a alma, uma migração deste lugar para um outro. Se, de fato, não há
sensação alguma, mas é como um sono, a morte seria um maravilhoso presente. Creio que, se alguém escolhesse a noite na qual tivesse dormido sem ter nenhum sonho, e comparasse essa noite às outras noites e dias de sua vida e tivesse de dizer quantos dias e noites na sua vida havia vivido melhor, e mais docemente do que naquela noite, creio que não somente qualquer indivíduo mas até um grande rei acharia fácil escolher a esse respeito, lamentando todos os outros dias e noites. Assim, se a morte é isso, eu por mim a considero um presente, porquanto, desse modo, todo o tempo se resume a uma única noite.
Se, ao contrário, a morte é como uma passagem deste para outro lugar, e, se é verdade o que se diz que lá se encontram todos os mortos, qual o bem que poderia existir, ó juízes, maior do que este? Porque, se chegarmos ao Hades,
libertando-nos destes que se vangloriam serem juízes, havemos de encontrar os verdadeiros juízes, os quais nos diria que fazem justiça acolá: Monos e Radamante, Éaco e Triptolemo, e tantos outros Deuses e semi-Deuses que foram justos na vida; seria então essa viagem uma viagem de se fazer pouco caso? Que preço não serieis capazes de pagar, para conversar com Orfeu, Museu, Hesíodo e Homero?
Quero morrer muitas vezes, se isso é verdade, pois para mim especialmente a conversação acolá seria maravilhosa quando eu encontrasse Palamedes e Ajax Telamônio, e qualquer um dos antigos, mortos por injusto julgamento. E não
seria sem deleite, me parece, confrontar o meu com os seus casos e, o que é melhor, passar o tempo examinando e confrontando os de lá com os de cá, os últimos dos quais tem a pretensão de conhecer a sabedoria dos outros, e acreditam ser sábios sem o ser. A que preço, ó juízes, não se consentiria em
examinar aquele que guiou o grande exército a Tróia, Ulisses, Sísifo, ou os incontáveis outros? Isso constituiria inefável felicidade.
Com certeza aqueles de lá são mais felizes do que os de cá, mesmo porque, são imortais, se é que o que se diz é verdade.

Questões referente ao texto:

1) Segundo Sócrates, qual o papel do filósofo?
2) Como podemos entender a firmação de Sócrates de que "a vida sem reflexão não vale a pena ser vivida"?

3) Como Sócrates responde as acusações que lhe são feitas?