Posto isto, passemos ao tema da justiça tal como ele é tratado em A República. Na obra em questão, Sócrates está na casa do ancião Céfalo, na companhia deste e de outras pessoas. Questionado por Sócrates sobre como é a condição de idoso, Céfalo aponta a preocupação que, na velhice, os homens têm - já que, nesta fase da vida, a morte está inevitavelmente próxima - em relação ao que diz o mito sobre o mundo dos mortos. Segundo o mito, aqueles que foram injustos durante suas vidas serão castigados após a morte, ao contrário dos que tiveram uma existência calcada na justiça. Assim, o tema da justiça se insere nesta conversação. Como ser, então, um homem justo? É a pergunta que Sócrates dirige aos presentes, dando início ao longo debate que percorrerá todo o diálogo. O próprio Céfalo arrisca um primeiro pitaco: justo é devolver ao outro o que é seu. Isto é, a norma de justiça está aí atrelada à idéia de direito à propriedade privada. Poderíamos, hoje em dia, como exemplo, pensar num indivíduo que perdeu uma carteira cheia de dinheiro - de acordo com Céfalo, justo seria devolver à este homem sua carteira com o dinheiro. Parece-nos algo razoável pensado desta maneira. Porém, a definição proposta pelo ancião, aplicada genericamente, logo se mostra limitada, quando Sócrates a rebate questionando se é justo devolver uma arma à um dono que acabou de enlouquecer. Polemarco - outro personagem do diálogo - dá um outro palpite: justo é fazer bem aos nossos amigos e mal aos nossos inimigos. Sócrates, entretanto, acredita que não é próprio do homem justo fazer mal a quem quer que seja, rejeitando também esta segunda definição. Trasímaco entra no debate afirmando que justiça é sinônimo de obediência ao Estado - em outras palavras: justiça é aquilo que é vantajoso para o mais poderoso. Sócrates contra-argumenta afirmando que os governantes podem propor leis equivocadas (as quais não se deve obedecer) e exalta o que seria a verdadeira função de um estadista: zelar pelo bem da comunidade, e não pelo seu próprio.
As classes econômica (dos artesãos), militar (dos guardiões) e dos magistrados (dos governantes) são, para Platão, as três classes que formam uma sociedade. Segundo Platão, se essas classes não coexistirem de modo harmonizado, não haverá justiça na comunidade.
O governo da razão. Se a justiça na comunidade depende, então, que cada indivíduo desempenhe a sua função social, isto significa que a cidade ideal deve ser governada pelos filósofos, isto é, por aqueles que possuem uma alma predominantemente racional. Segundo Platão, o tipo de governo capaz de assegurar uma cidade justa é, portanto, aristocrático. É o governo de uma classe específica. A idéia é que a cidade seja conduzida de forma racional, com sabedoria (a sabedoria é a virtude dos filósofos). Platão não vê a divisão da sociedade em classes, o governo da classe filósofa e a harmonia entre governantes e governados como uma espécie de alienação. Aqui Platão nos parece distante de Marx [3]. Mas essa distância é apenas aparente. Marx repudiava a sociedade capitalista porque ela é dividida em classes sociais - mas Marx referia-se à divisão entre a classe rica opressora e a classe pobre oprimida. Platão não prega um governo da classe rica, mas sim um governo dos mais sábios. Neste sentido, seu aristocratismo é pouco distinto da atual democracia ocidental (considerando o fato de que, na democracia moderna, os cidadãos elegem representantes, supostamente os mais sábios e aptos a cumprirem a tarefa de governar). E pouco distinto também do marxismo à medida em que A República de Platão - tanto quanto o Manifesto do Partido Comunista, de Marx - vislumbra uma sociedade utópica, coletivista, sem ricos e pobres, onde todos os indivíduos possam ser felizes. Platão, aliás, antecipa o que Marx e Jean-Jacques Rousseau [4], pensadores modernos, disseram muitos e muitos anos depois de A República ter sido escrita: sociedades onde existem ricos e pobres são desarmônicas, suscetíveis à conflitos de classes [5]. Uma sociedade justa na concepção platônica não deve, então, possuir disparidades deste tipo. Quando afirmamos que a aristocracia é, para Platão, a única forma de governo pela qual a justiça pode se realizar na cidade, não devemos confundir aristocracia com oligarquia. Segundo Platão, a oligarquia - definida como "governo dos ricos" (quando a cidade escolhe seus reis com base em suas posses) - é uma forma de governo corrompida, incapaz de manter a comunidade em harmonia, e típica de homens injustos. Se, portanto, a cidade justa é aquela na qual os indivíduos cumprem devidamente a sua função social (justamente em prol da manutenção dessa cidade justa), na qual há harmonia entre as classes e governo da razão (dos filósofos), como definir, então, o homem justo? O homem justo é aquele indivíduo em que a parte racional de sua alma comanda as outras duas, moderando a concupiscência e a ira; é o indivíduo que, assim, mantém em harmonia as três partes de sua alma. Mesmo o artesão e o guardião da cidade (isto é, os não-filósofos da cidade platônica) devem se autogovernar pela razão. Nós contemporâneos podemos tirar lições interessantes do pensamento de Platão: por exemplo a idéia de que um homem não pode ser justo se não for, ao mesmo tempo, reflexivo (mesmo o "não-filósofo"); sem reflexão, a justiça não é possível. Neste sentido, o não-reflexivo tenderia para a injustiça, mesmo involuntariamente [6]. Numa pós-modernidade dinamizada como a nossa, onde os indivíduos são, em geral, extremamente afeitos aos juízos apressados, irrefletidos e ao indiferencismo perante os problemas que enfrentamos enquanto sociedade, a tese de Platão é digna de ser bem observada. Outra importante colaboração do pensamento platônico é a idéia de que justiça é também sinônimo de um bom cumprimento de um papel social. Em outras palavras: um sujeito que não "faz a sua parte" em prol da coletividade, também não é um homem justo - conseqüentemente, uma comunidade formada por homens que nada fazem em prol do coletivo, não é uma comunidade justa. Vivendo numa sociedade injusta, as chances que tenho de me portar como um homem injusto são muito maiores; e sendo um homem injusto, são bem menores as minhas chances de ajudar a tornar justa a sociedade em que vivo.
Uma sociedade não pode ser justa se os seus indivíduos não tiverem uma alma justa. E, segundo Platão, um indivíduo não pode ter uma alma justa se não for reflexivo, se não for capaz de pensar - por exemplo - os problemas da sociedade e se não cumprir devidamente um papel social que beneficie toda a coletividade.
Notas
[3] Karl Marx (1818-1883): importante pensador alemão. Autor de obras como Manifesto do Partido Comunista e O Capital.
[4] Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): importante filósofo suíço. Autor de obras como Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos das Desigualdades Entre os Homens e O Contrato Social.
[5] Por isso, tanto Rousseau quanto Marx propuseram soluções para a questão das desigualdades sociais. Enquanto Rousseau acreditava que um novo contrato social garantiria a igualdade entre os cidadãos, Marx apostava numa revolução do proletariado e, assim, na instituição de um governo que aboliria as classes sociais.
[6] Hannah Arendt (filósofa alemã que viveu de 1906 até 1975), também nos mostra isso, em sua obra Eichmann em Jerusalém. Segundo Arendt, Eichmann, julgado em Israel (no ano de 1961) por sua forte colaboração com o regime nazista na Alemanha, não seria um sujeito dotado de uma "monstruosidade natural", mas sim - nas palavras da própria filósofa - um "funcionário mediano, um arrivista medíocre, incapaz de refletir sobre seus atos ou de fugir aos clichês burocráticos". É a idéia de que o mal está atrelado à ausência de reflexão. Mais sobre Eichmann no link http://pt.wikipedia.org/wiki/Adolf_Eichmann
Rafael Issa é graduando em Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e formado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).
excelente, o site está de paparabéns, este artigo me ajudou muito num trababalho de pesquisa da escola...
ResponderExcluirValeu
Bjss
oiiiiii rafael adorei o seu texto, mais eu queria saber resumidamente o que é o bem e o mal...
ResponderExcluirexcelente...
ResponderExcluirpois admiro pessoas que ainda passa seu conhecimento !!!
Está de parabéns, ajudou muito no meu trabalho escolar e é bem mais fácil que o meu livro.
ResponderExcluirBrigada
Continue escrevendo...
Parabéns pelo artigo, muito bom.
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