segunda-feira, 1 de junho de 2009

O preconceito contra a filosofia (e a filosofia contra o preconceito)

Todo universitário do curso de filosofia certamente já deve ter ouvido por aí (muito provavelmente de alguém que nunca passou nem perto de um livro de filosofia) algum comentário preconceituoso em relação ao seu objeto de estudo. As acusações mais freqüentes que são feitas explícita e implicitamente contra a filosofia são de que ela não faz sentido algum, é "esquisita", "viajante", "chata" e não tem utilidade social. Tirar esses preconceitos da cabeça de uma pessoa costuma ser missão quase impossível. Lecionar a disciplina no ensino médio, ainda mais difícil (se ensinar, de uma maneira geral, hoje em dia está muito complicado, imaginem ensinar filosofia). Resta então a tentativa de apontar os porquês desta resistência, e investigar se a filosofia é realmente inútil e, portanto, merecedora de tanto descrédito.

Um preconceito sempre tem origem social - em geral, numa violência social. O preconceito racial contra os negros, ainda hoje existente, nos serve como exemplo disto. Ele se origina durante o período escravista, na violenta relação entre o opressor branco e o escravo negro. Se torna preconceito de raça quando os brancos, vendo constantemente os negros numa posição socialmente subalterna, se esquecem do que um dia fizeram contra estes, perdendo de vista, portanto, a genealogia desta desigualdade. E aí faz-se a distorção: se boa parte dos negros moram em favelas e boa parte dos brancos possuem melhores condições de moradia, dentre outras coisas, isso se deve pura e exclusivamente à uma questão de competência destes e incompetência daqueles - eis o erro. A melhor forma de combater um preconceito, então, é expondo a sua raiz - porque se a escravidão for escancarada como a grande responsável pela difícil situação social de muitos negros hoje em dia, e é, cai por terra o argumento racista (se é que um argumento racista pode ser realmente considerado um argumento) de que o afro descendente seria, por predisposição genética, naturalmente "vagabundo", "preguiçoso" e "incapaz". Quando uma relação de opressão e violência é naturalizada, os indivíduos de temperamento menos reflexivo acabam aceitando a concepção, ilusória, de que seus preconceitos são opiniões inteiramente autônomas, livres e isentas de qualquer influência ideológica do meio. Hoje em dia muitos defendem o "direito democrático do achismo", e nesse sentido, no de que a livre opinião é um direito inalienável, não estão errados. Entretanto, poucos se dão ao trabalho de buscar embasamento para suas "verdades". Em outras palavras: poucos se dão ao trabalho de investigar se o que "eu acho" é uma opinião realmente minha ou, ao contrário, uma indução social. Isso não acontece por acaso, e tudo tem a ver com o atual espírito do mundo ocidental: o da defesa de uma democracia superficial, onde o discurso pró-liberdade encerra-se em si mesmo, sem que paremos para pensar como poderíamos usar os livres espaços de maneira mais qualitativa, e ainda, cegando às diversas formas de condicionamentos que permanecem existindo. O preconceito, portanto, não é nada mais do que o "achismo" em seu grau máximo de irreflexão, direcionado contra um grupo específico de pessoas. E aí, mesmo quando a legislação vigente tenta remar contra a maré de um preconceito qualquer (é o caso do preconceito racial, já que hoje, pela constituição, negros e brancos, possuem o mesmo direito à liberdade, e igualmente submetido ao dever de seguir as leis do Estado), a discriminação ainda resiste. Algo semelhante acontece com a filosofia; embora a resolução do Conselho Nacional de Educação (de 2006) valorize a filosofia (já que a torna, ao lado da sociologia, disciplina obrigatória no ensino médio), a sociedade continua sem perceber sua utilidade social - uma utilidade que a lei já reconhece. Vivemos numa pós-modernidade calcada em valores pragmáticos, onde o ritmo de nossas vidas é extremamente acelerado; uma grande quantidade (e nem sempre muita qualidade) de informações circulam diante de nós. Sobra pouco tempo, disposição e até mesmo capacidade para pensar de modo mais profundo. Até porque, segundo o sociólogo francês Gilles Lipovestky (autor de livros que dissecam os tempos atuais, como A Era do Vazio e Felicidade Paradoxal), uma sociedade estruturada pela lógica do consumo requer dos indivíduos uma postura mais passional (direcionada ao ato impulsivo de consumir) e menos reflexiva.

A utilidade social da filosofia é justamente a de se contrapor à tudo isso, e representar um pedido de atenção e de calma numa contemporaneidade que se caracteriza pela dispersão e pelo corre-corre. É o que pensadores como, por exemplo, Mario Sérgio Cortella (professor da PUC-SP), Roberto Romano (professor da Unicamp) e Renato Janine Ribeiro (professor da USP), os três formados em filosofia, procuram fazer com suas palestras, livros e artigos em jornais e revistas. A filosofia questiona os juízos apressados. O filósofo é aquele que nos propõe o desafio de reexaminarmos nossos achismos - o que pode ser irritantemente difícil, incômodo, à medida em que o achismo não é uma construção reflexiva do indivíduo, mas sim uma opinião inconscientemente consumida numa sociedade que, nas palavras de José Miguel Wisnik, músico e professor de literatura brasileira da USP, tornou mercado até mesmo sua consciência moral. Nesse sentido, a filosofia se posiciona não apenas contra o preconceito direcionado à ela mesma, mas contra toda e qualquer espécie de preconceito que possa existir. Buscando conceituar via-reflexão, ela nega as pré-conceituações. Ao exigir de nós uma postura intelectual com a qual não estamos muito habituados, a filosofia sofre resistência - como sofreu em sua origem. Segundo diversos estudiosos, é com o filósofo grego Sócrates (469–399 a.C.) que efetivamente nasce a filosofia. E nasce não por meio de uma teoria. O primeiro grande filósofo da história da humanidade afirmou só saber que nada sabia (a sabedoria socrática consiste em conhecer sua própria ignorância), não escreveu uma única linha sequer e não apontou doutrina alguma. A filosofia pode - e deve - trazer a humildade de Sócrates para os dias de hoje, já que vivemos numa era onde o individualismo narcísico têm nos tornado cada dia mais arrogantes, menos conscientes de que "nada" sabemos e, assim, menos autocríticos com nossas concepções. Sócrates teve, portanto, uma atitude. Ao invés de escrever, preferiu caminhar pelas ruas de Atenas, onde vivia, dialogando com seus concidadãos, fazendo perguntas inesperadas e embaraçosas à estes, convidando-os à um exame aprofundado de suas opiniões. Por isso, muitos sentiram-se incomodados com o "moscardo dos atenienses". Denunciado por "não acreditar nos deuses da cidade" e por "corromper a juventude", acabou condenado à morte. Desde então, Sócrates vem sendo sistematicamente "assassinado" por todos aqueles que recusam-se a refletir.

Sócrates

No livro VI de A República, uma das obras mais importantes da história da filosofia, o pensador grego Platão (428 ou 427-347 a.C.) - discípulo de Sócrates - *afirma que numa cidade desorganizada, onde o sistema educacional é ruim, os filósofos são considerados inúteis pelos demais membros da comunidade. Em contrapartida, num Estado bem estruturado, os filósofos possuem uma função central: governam a cidade. Obviamente que falar em "governo de filósofos" soa como um grande exagero - exagero típico de quem, como Platão, defendia não a democracia (refiro-me à democracia antiga, dos gregos), mas sim um governo aristocrático, de poucos, dos "melhores". O que nos interessa aqui, contudo, é o sentido subjacente da tese platônica: a idéia de que a sociedade deve dirigir-se racionalmente, com sabedoria, o que é fundamental em uma democracia moderna, com a qual Platão jamais teve contato. A filosofia tem fundamentalmente um compromisso com a razão; mesmo quando se trata de criticar uma exacerbada valorização da razão (crítica que se constata em pensadores como Friedrich Nietzsche, David Hume etc), a racionalidade não é perdida de vista. Mesmo quando pretende defender a existência de Deus, a filosofia busca justificativas racionais (é o caso de São Tomás de Aquino e muitos outros). Devidamente valorizada, tem uma grande utilidade social. Fosse isso mentira, a ditadura militar brasileira (1964-1985) - como toda ditadura, sempre preocupada em abortar toda via de reflexão profunda que possa conduzir os indivíduos rumo à um questionamento do status quo - não teria **perseguido justamente a "inútil" filosofia. Numa democracia, onde as opiniões circulam e fluem mais livremente, a filosofia pode ter, inclusive na escola, um papel de suma importância: estimular os homens à se libertarem de suas amarras internas. Amarras que, atreladas à discursos prontos e superficiais, nos impõem uma visão de mundo muito limitada.

* Platão faz do seu mestre, Sócrates, o principal personagem de A República, narrada em forma de diálogo. Portanto, "quem fala" sobre o tema em questão é o personagem Sócrates, que dialoga com outros personagens (Céfalo, Polemarco, Adimanto, Trasímaco, Gláucon...). É Sócrates quem, no diálogo, representa as idéias de Platão, autor da obra.
** Com o golpe de 64, a filosofia e a sociologia foram banidas do ensino médio. Além disso, muitos professores universitários de filosofia foram perseguidos pelo regime militar; é o caso, por exemplo, do já falecido filósofo Bento Prado Jr., professor de filosofia (USP) de 1961 até 1969, quando - cassado pelo AI-5 - foi impedido de prosseguir lecionando. Dentre os estudantes universitários que, durante a ditadura, foram perseguidos pela repressão, muitos faziam filosofia. O frade dominicano Tito de Alencar, estudante de filosofia da USP, sofreu, na prisão, torturas das quais jamais se recuperou psicologicamente. Já exilado na França, mas ainda perturbado com a experiência, suicidou-se em 1974. Sua história é contada no livro Batismo de Sangue, de Frei Betto, que foi adaptada ao cinema. Vale ainda, para reiterar a tese de que a filosofia pode suscitar - naqueles que se dedicam à ela - uma postura crítica e combativa diante de toda e qualquer conjuntura opressiva, citar o confronto entre os estudantes de filosofia da USP e estudantes do Mackenzie, na rua Maria Antonia (03/10/1968). Enquanto aqueles se punham contra o regime militar, estes eram favoráveis à ele.

Rafael Issa é graduando em Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e formado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).

10 comentários:

  1. O texto é muito interessante ..aprofundou bem mais do que se espera pelo fato de tanto precoinceito ..Excelente !

    POr :Byanka

    ResponderExcluir
  2. só uma pergunta..
    e hoje? tem espaço para a filosofia?

    ResponderExcluir
  3. Bem interessante quando crescer quero ser filosofa.

    ResponderExcluir
  4. bem explicativo , me ajudou no trabalho escolar , o preconceito sistematicamente existe para aqueles que não sabem se aprofundar em quaisquer assunto . ! infelizmente isso existe . OBRIGADO .

    ResponderExcluir
  5. e impossivel acreditar k no sec XXI se tem esse pensamento em relaçao a filosofia k e muito utilizada por todos nos em nosso dia a dia sou estudante e reconheço k a maioria dos alunos acham k a filosofia e 'um saco' eu gosto de uma aula por semana ter esse tipo de aprofundamento e dialogo com a profe e meus colegas para mim a filo e importante hoje em dia pena k nem todos possam aproveita-la melhor!

    ResponderExcluir