terça-feira, 30 de junho de 2009

"A crise não é minha, é do Senado!" - Uma visão platônica e hobbesiana da decadente democracia brasileira.

Pois é...

Ahhh se o Juscelino Kubistchek pudesse prever o futuro, e ver que o presidente do Senado falaria uma besteira dessas, ele jamais levantaria um estaca sequer de Brasília. Mas...

Essa foi boa. Aliás, muito boa.

Porque se a crise é do senado, este, por sua vez, necessita de membros – os senadores – para existir. O Sr. José Sarney é um destes senadores que, eleito pelo povo, constituem o Senado; assim, se ele mesmo diz que a crise é do Senado, logo, a crise também é dele.

Complicado? Parece que não...

O estado em que se encontram as instituições políticas de nosso país chega a ser lamentável. Será que aqueles que lutaram pela democracia em nosso país – através do movimento Diretas já- imaginariam o nível em que hoje se encontram os representantes eleitos pelo povo e que, ao invés de lutar pelos direitos destes, criam atos secretos para favorecimento próprio?

Onde está a democracia?

Infelizmente, ninguém sabe. Ninguém faz nada. Nossa sociedade se cala perante os abusos do poder em todas as suas esferas, seja lá em Brasília com a “novidade” dos atos secretos, seja aqui em São Paulo com o descaso com a educação e a segurança, enfim, estes e outros escândalos por um tempo estão na mídia, depois caem no esquecimento. Muitos dizem que podemos exercer nossos direitos e retirar os maus governantes através do voto, então surge à pergunta: Em quem votar?

As leis que vigoram em nossa democracia não surtem efeito naqueles que possuem o poder, seja ele político ou financeiro. Ao contrário, elas são severas com aqueles que, pelo descaso deste mesmo poder democrático que tem em si a utopia de garantir o mesmo direito a todos, ferem a lei com seus roubos, assassinatos, seqüestros e quando presos são apresentados a sociedade para transmitir a mensagem de que a lei funciona e que o crime não compensa. O engraçado é quando os mais “graúdos” são pegos, sempre existe um habeas corpus pronto para ser expedido e liberar o “suspeito” até que tudo seja esclarecido; vide os casos da dona da Daslu Eliana Tranchesi, do banqueiro Daniel Dantas, entre outros.

É por estes e outros motivos que cada vez mais vou aderindo às idéias de Platão sobre a democracia. Segundo ele a democracia é “a pior das formas boas de governo e a melhor das más”, tal afirmação não é feita ao acaso, pois, a sociedade ateniense do séc. V, trazia o que era até então uma novidade com relação às formas políticas para se governar uma cidade: a democracia. A democracia ateniense privilegiava os cidadãos no tocante ao direito ao voto (vale lembrar que os cidadãos, neste caso, referem-se somente aos homens nascidos em Atenas; mulheres e escravos – em sua maioria prisioneiros de guerra – não tinham o direito ao voto) e a participação destes nas assembléias, onde todos tinham o direito à palavra.

Neste contexto surgem os sofistas, pois em uma forma de governo onde é permitida a expressão de seus indivíduos, saber persuadir com as palavras e usar técnicas para argumentá-las torna-se uma necessidade principalmente para aqueles que naquela época aspiravam seguir em sua carreira política. A imagem dos sofistas então ganha em importância, afinal cabia a eles preparar aqueles que desejavam se beneficiar da política através do jogo das palavras. É através deste ponto que Platão começa a ter uma visão negativa da democracia, pois, aqueles que aspiravam à vida política não o faziam com o intuito de fazer o bem para a sua cidade e conseqüentemente aos seus cidadãos, muito pelo contrário, utilizavam para satisfazer suas vaidades. A condenação de Sócrates fornece a Platão o material necessário para desprezar tal forma de governo.

Percebe-se então que o contexto político sobre o qual vivia Platão, no qual a democracia era totalmente disforme com os seus princípios e o nosso contexto que se caracteriza também como democrático, apesar de algumas diferenças entre estas democracias, não parece muito distante do contexto de Platão, no que tange ao uso das palavras em benefício próprio.

Então como resolver o problema político de nosso país? Qual seria a melhor alternativa, ou a melhor forma de governo?

É uma pergunta a meu ver de difícil resposta, pois vivemos em um país que o espírito de igualdade de direitos entre todos que caracteriza a democracia – como já dito - não existe. Os ricos esmagam os mais pobres, tornando-os dependentes de poucas oportunidades de trabalho prejudicando assim sua melhora de vida e conseqüentemente sua ascensão social. Dessa forma, vejo a sociedade dividida em duas partes que lutam entre si: de um lado os ricos que lutam uns contra os outros, com suas artimanhas e contatos importantes procuram derrubar o outro e tornar-se cada vez mais rico, de outro lado, vejo os pobres que também lutam entre si, porém pelas pouquíssimas oportunidades de emprego que surgem, uma luta também desleal onde somente aqueles um pouco melhor preparados ou com alguns contatos atingem seus objetivos, deixando assim aqueles que sobraram cada vez mais necessitados.

Tais lutas se refletem nas relações sociais, basta observarmos os índices de violência apresentados ou então, para aqueles que não confiam nos números, basta por os pés para fora de casa e perceber o quanto os homens são intolerantes uns com os outros, querendo sempre levar vantagem sobre aquele menos avisado. Isso acontece devido a essa falta de igualdade de direitos e oportunidades que o regime democrático brasileiro deveria promover e que infelizmente não o faz. Vivemos em uma verdadeira selva, onde cada homem e mulher saem às ruas procurando a seu modo manter seus empregos e a segurança de seus familiares.

Quando isso não acontece surgem os furtos, os assassinatos, os sequestros-relâmpagos, que são a resposta de alguns membros da sociedade a um Estado ausente em sua formação enquanto cidadão, ou seja, a ausência de uma educação digna, de um sistema de saúde mais humano e principalmente a ausência de um poder judiciário que cumpra o seu papel de ser simplesmente justo.

Thomas Hobbes (1588-1679) filósofo político fornece em suas obras, principalmente a do Leviatã, uma possível solução de tais conflitos. Segundo ele, os homens em uma sociedade sem leis, que ele define como um estado de natureza encontra-se por incrível que pareça em uma condição se não igual, ao menos semelhante da que nossa sociedade que possui um sistema legislativo democrático atravessa. Ou seja, enquanto a nossa constituição define que todos são iguais perante a lei, Hobbes define os homens como iguais por natureza, entretanto, como buscam os mesmos interesses brigam entre si e o mais forte ou o mais esperto leva a vantagem sobre o outro, devido à ausência de leis.

É também um estado, que segundo Hobbes, não oferece garantia de segurança, pois a qualquer momento o indivíduo pode ser morto devido à cobiça do outro sobre o que ele possui (qualquer semelhança com a nossa sociedade é mera coincidência). Como neste estado de natureza não existe um poder regulador, ou seja, os homens podem fazer o que bem entenderem Hobbes classifica estas ações como direito de natureza, que nada mais é do que a luta que o homem tem para conseguir manter-se vivo e conseguir fazer o que bem entende. Porém, o homem só faz uso deste direito quando percebe que sua vida corre perigo, o homem segundo Hobbes deve antes de qualquer coisa procurar a paz é a chamada lei de natureza, em que os homens através de pactos com outros homens procuram estabelecer a paz.

O motivo para que o homem procure se organizar e viver em um estado são justamente estes: viver em paz, ter seus direitos assegurados e ter a certeza de que sua vida será conservada. Isso só será possível com a criação de um Estado que seja governado com uma única pessoa que centralize em si a vontade de todos, com o consentimento de todos: o Leviatã.

A democracia em nosso país passa por uma grave crise, “é uma guerra de todos contra todos”, como afirmara Hobbes. Entretanto, o grande mal que aflige o nosso país é o consentimento de todos nós cidadãos, que vemos todas estas barbaridades acontecendo que ficamos calados, imóveis. Entendo que apesar dos problemas a democracia ainda é - ao contrário de Platão e Hobbes – a melhor forma de governo e principalmente a mais justa, mas precisamos viver e praticar a democracia não somente através do voto e sim cobrando exigindo mudanças que possam melhorar a vida de todos, sem exceção, tanto pobres como ricos.



quarta-feira, 17 de junho de 2009

O Medo, segundo Baruch Espinosa


Todos nós em algum momento da vida, passamos por esta experiência: sentir medo.
Entretanto, a forma como administramos este momento faz toda a diferença quando este é superado. Afinal, o medo coloca o ser humano em tal situação que a razão acaba perdendo espaço para a emoção, e as ações regadas a esta – em sua maioria – são danosas e irreversíveis; o medo também faz com que se procure alternativas para superá-lo ou esquecê-lo, é sobre estas alternativas que Baruch de Espinoza (1632-1677) trata no prefácio de seu livro Tratado Teológico-Político e que fornecerá o fundamento para a nossa reflexão.
Logo no início de seu prefácio ele afirma:

“ Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro ou se a fortuna lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição.”

A análise que Espinosa faz do homem de sua época é a de este é refém de suas necessidades, ou seja, quando ele as consegue suprir vive bem, ao contrário a dificuldade em supri-las leva-o ao medo e conseqüentemente a superstição. Assim, o homem quando tem segurança em sua vida e em seus propósitos jamais vai a procura do “sobrenatural”ou da religião pelo fato de que ele, por suas próprias forças, e sobretudo pelo seus bens pode ser feliz e sentir-se seguro.
O homem contemporâneo é o retrato fiel da análise de Espinosa feita em seu tratado, pois em uma sociedade globalizada, de profunda exclusão e que define as pessoas pelo que possuem e não pelo o que são fazem com que o homem busque incessantemente ocupar este espaço. Porém, ocupar este espaço não é uma tarefa fácil; primeiro porque o homem é cheio de esperanças: no amor, no financeiro, na saúde, etc. Como suprir estas esperanças? A resposta em nossos dias está na religião. É através dela que o homem fará uma ponte para chegar aonde espera, aonde deseja; a busca pelo sobrenatural, por algo mais poderoso que ele é a solução que certamente não irá deixá-lo na situação em que se encontra.
Mas, o homem é contraditório, egoísta e age por interesse próprio. Tais características encontram-se como que implícitas nas palavras de Espinosa que veremos a seguir:

“Não há, com efeito, ninguém que tenha vivido entre os homens que não se tenha dado conta de que a maior parte deles, se estão em maré de prosperidade, por mais ignorantes que sejam, ostentam uma tal sabedoria que até se sentem ofendidos se alguém lhes quer dar um conselho. Todavia, se estão na adversidade, já não sabem pra onde se virar, suplicam o conselho de quem quer que seja e não há nada que se lhes diga, por mais frívolo, absurdo ou inútil, que eles não sigam.”

Dessa forma, vemos que para Espinosa o homem é inconstante, maleável, incapaz de ser o que é. A situação de conforto ou de riqueza traz ao homem sabedoria, força e coragem que são características importantes no homem e que o guiam em suas decisões e projetos. Mas, tal situação também o torna arrogante, visto que ele se acha em um seleto grupo de “poderosos”. Mais uma vez vemos a atualidade do texto de Espinosa, pois, se olharmos em nosso redor e verificarmos as características dos “afortunados” veremos que ele tem razão. Se prestarmos bem a atenção poderá perceber o quanto se acham donos da razão, das melhores idéias, das soluções ideais; para quem trabalha em uma empresa verá a realidade destas palavras, por exemplo, alguém já percebeu o quanto os patrões em suas empresas jamais admitem as opiniões de funcionários mais simples, e que estes dão valor as opiniões de seus gerentes e diretores? E quando saem as soluções vemos quanto tempo fora perdido em reuniões, palestras, discussões, pois chegaram a conclusões comuns, nada que altere o rumo da própria empresa.
Entretanto, estes mesmos homens que jamais aceitariam opiniões em tempos de fortuna, na adversidade se apegam a todo o tipo de conselhos. Se tornam religiosos do dia para a noite, enchem os bancos das igrejas louvando e cantando a Deus, o motivo da conversão? O medo. A possibilidade da penúria, da tristeza, da falta no lugar da abundância fazem os homens procurarem de tudo e colocarem a culpa em qualquer coisa, uns dizem: “É coisa do demônio!”, outros: “É um espírito maligno!”. Um exemplo disso são as igrejas que prometem a mudança, a riqueza ou então pais de santo que desfazem qualquer amarração, que trazem a pessoa amada em “2 dias!”. Tais slogans atraem os desesperados, sedentos por uma solução divina para seus medos. Tamanho é o medo de sentir medo, que estes pautam suas ações baseados nas superstições que trazem consigo, como nos destaca Espinosa:

“ Se acontece, quando estão com medo, qualquer coisa que lhes faz lembrar um bem ou um mal por que já passaram julga que é o prenúncio da felicidade ou da infelicidade... apesar de já se terem enganado centenas de vezes.”

Quem em sua vida também não teve tal pressentimento? Algo bom que acontecera, tem seus momentos como que reprisados dando a este um sinal de que algo bom virá, em contrapartida se acontece o contrário, se prepare! Pois o inferno irá começar! Não passar embaixo de escadas, desviar do gato preto, dentre outras, são medos retidos dentro do homem , que guiam sua vida e suas decisões. Quanto medo! Somos reféns de nós mesmos, seja na fortuna ou na adversidade, somos reféns. Não que o homem não deva buscar o auxílio divino, pelo contrário, o que Espinosa quer mostrar-nos com suas palavras em seu texto é a covardia do homem em ser o que ele é, ou seja, é a incapacidade de fazer da adversidade um degrau para a felicidade, aprender com os erros com a finalidade de ser melhor.
O medo para Espinosa é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição. Os homens, em sua grande maioria procuram a Deus não por causa Dele, mas sim para conservar suas vaidades e perdem, dessa maneira, uma oportunidade valiosa de serem melhores através da ação de Deus. Mas não, todos estão em busca de um milagre que é a solução dos problemas.
Isso é o que me dá medo!

segunda-feira, 1 de junho de 2009

O preconceito contra a filosofia (e a filosofia contra o preconceito)

Todo universitário do curso de filosofia certamente já deve ter ouvido por aí (muito provavelmente de alguém que nunca passou nem perto de um livro de filosofia) algum comentário preconceituoso em relação ao seu objeto de estudo. As acusações mais freqüentes que são feitas explícita e implicitamente contra a filosofia são de que ela não faz sentido algum, é "esquisita", "viajante", "chata" e não tem utilidade social. Tirar esses preconceitos da cabeça de uma pessoa costuma ser missão quase impossível. Lecionar a disciplina no ensino médio, ainda mais difícil (se ensinar, de uma maneira geral, hoje em dia está muito complicado, imaginem ensinar filosofia). Resta então a tentativa de apontar os porquês desta resistência, e investigar se a filosofia é realmente inútil e, portanto, merecedora de tanto descrédito.

Um preconceito sempre tem origem social - em geral, numa violência social. O preconceito racial contra os negros, ainda hoje existente, nos serve como exemplo disto. Ele se origina durante o período escravista, na violenta relação entre o opressor branco e o escravo negro. Se torna preconceito de raça quando os brancos, vendo constantemente os negros numa posição socialmente subalterna, se esquecem do que um dia fizeram contra estes, perdendo de vista, portanto, a genealogia desta desigualdade. E aí faz-se a distorção: se boa parte dos negros moram em favelas e boa parte dos brancos possuem melhores condições de moradia, dentre outras coisas, isso se deve pura e exclusivamente à uma questão de competência destes e incompetência daqueles - eis o erro. A melhor forma de combater um preconceito, então, é expondo a sua raiz - porque se a escravidão for escancarada como a grande responsável pela difícil situação social de muitos negros hoje em dia, e é, cai por terra o argumento racista (se é que um argumento racista pode ser realmente considerado um argumento) de que o afro descendente seria, por predisposição genética, naturalmente "vagabundo", "preguiçoso" e "incapaz". Quando uma relação de opressão e violência é naturalizada, os indivíduos de temperamento menos reflexivo acabam aceitando a concepção, ilusória, de que seus preconceitos são opiniões inteiramente autônomas, livres e isentas de qualquer influência ideológica do meio. Hoje em dia muitos defendem o "direito democrático do achismo", e nesse sentido, no de que a livre opinião é um direito inalienável, não estão errados. Entretanto, poucos se dão ao trabalho de buscar embasamento para suas "verdades". Em outras palavras: poucos se dão ao trabalho de investigar se o que "eu acho" é uma opinião realmente minha ou, ao contrário, uma indução social. Isso não acontece por acaso, e tudo tem a ver com o atual espírito do mundo ocidental: o da defesa de uma democracia superficial, onde o discurso pró-liberdade encerra-se em si mesmo, sem que paremos para pensar como poderíamos usar os livres espaços de maneira mais qualitativa, e ainda, cegando às diversas formas de condicionamentos que permanecem existindo. O preconceito, portanto, não é nada mais do que o "achismo" em seu grau máximo de irreflexão, direcionado contra um grupo específico de pessoas. E aí, mesmo quando a legislação vigente tenta remar contra a maré de um preconceito qualquer (é o caso do preconceito racial, já que hoje, pela constituição, negros e brancos, possuem o mesmo direito à liberdade, e igualmente submetido ao dever de seguir as leis do Estado), a discriminação ainda resiste. Algo semelhante acontece com a filosofia; embora a resolução do Conselho Nacional de Educação (de 2006) valorize a filosofia (já que a torna, ao lado da sociologia, disciplina obrigatória no ensino médio), a sociedade continua sem perceber sua utilidade social - uma utilidade que a lei já reconhece. Vivemos numa pós-modernidade calcada em valores pragmáticos, onde o ritmo de nossas vidas é extremamente acelerado; uma grande quantidade (e nem sempre muita qualidade) de informações circulam diante de nós. Sobra pouco tempo, disposição e até mesmo capacidade para pensar de modo mais profundo. Até porque, segundo o sociólogo francês Gilles Lipovestky (autor de livros que dissecam os tempos atuais, como A Era do Vazio e Felicidade Paradoxal), uma sociedade estruturada pela lógica do consumo requer dos indivíduos uma postura mais passional (direcionada ao ato impulsivo de consumir) e menos reflexiva.

A utilidade social da filosofia é justamente a de se contrapor à tudo isso, e representar um pedido de atenção e de calma numa contemporaneidade que se caracteriza pela dispersão e pelo corre-corre. É o que pensadores como, por exemplo, Mario Sérgio Cortella (professor da PUC-SP), Roberto Romano (professor da Unicamp) e Renato Janine Ribeiro (professor da USP), os três formados em filosofia, procuram fazer com suas palestras, livros e artigos em jornais e revistas. A filosofia questiona os juízos apressados. O filósofo é aquele que nos propõe o desafio de reexaminarmos nossos achismos - o que pode ser irritantemente difícil, incômodo, à medida em que o achismo não é uma construção reflexiva do indivíduo, mas sim uma opinião inconscientemente consumida numa sociedade que, nas palavras de José Miguel Wisnik, músico e professor de literatura brasileira da USP, tornou mercado até mesmo sua consciência moral. Nesse sentido, a filosofia se posiciona não apenas contra o preconceito direcionado à ela mesma, mas contra toda e qualquer espécie de preconceito que possa existir. Buscando conceituar via-reflexão, ela nega as pré-conceituações. Ao exigir de nós uma postura intelectual com a qual não estamos muito habituados, a filosofia sofre resistência - como sofreu em sua origem. Segundo diversos estudiosos, é com o filósofo grego Sócrates (469–399 a.C.) que efetivamente nasce a filosofia. E nasce não por meio de uma teoria. O primeiro grande filósofo da história da humanidade afirmou só saber que nada sabia (a sabedoria socrática consiste em conhecer sua própria ignorância), não escreveu uma única linha sequer e não apontou doutrina alguma. A filosofia pode - e deve - trazer a humildade de Sócrates para os dias de hoje, já que vivemos numa era onde o individualismo narcísico têm nos tornado cada dia mais arrogantes, menos conscientes de que "nada" sabemos e, assim, menos autocríticos com nossas concepções. Sócrates teve, portanto, uma atitude. Ao invés de escrever, preferiu caminhar pelas ruas de Atenas, onde vivia, dialogando com seus concidadãos, fazendo perguntas inesperadas e embaraçosas à estes, convidando-os à um exame aprofundado de suas opiniões. Por isso, muitos sentiram-se incomodados com o "moscardo dos atenienses". Denunciado por "não acreditar nos deuses da cidade" e por "corromper a juventude", acabou condenado à morte. Desde então, Sócrates vem sendo sistematicamente "assassinado" por todos aqueles que recusam-se a refletir.

Sócrates

No livro VI de A República, uma das obras mais importantes da história da filosofia, o pensador grego Platão (428 ou 427-347 a.C.) - discípulo de Sócrates - *afirma que numa cidade desorganizada, onde o sistema educacional é ruim, os filósofos são considerados inúteis pelos demais membros da comunidade. Em contrapartida, num Estado bem estruturado, os filósofos possuem uma função central: governam a cidade. Obviamente que falar em "governo de filósofos" soa como um grande exagero - exagero típico de quem, como Platão, defendia não a democracia (refiro-me à democracia antiga, dos gregos), mas sim um governo aristocrático, de poucos, dos "melhores". O que nos interessa aqui, contudo, é o sentido subjacente da tese platônica: a idéia de que a sociedade deve dirigir-se racionalmente, com sabedoria, o que é fundamental em uma democracia moderna, com a qual Platão jamais teve contato. A filosofia tem fundamentalmente um compromisso com a razão; mesmo quando se trata de criticar uma exacerbada valorização da razão (crítica que se constata em pensadores como Friedrich Nietzsche, David Hume etc), a racionalidade não é perdida de vista. Mesmo quando pretende defender a existência de Deus, a filosofia busca justificativas racionais (é o caso de São Tomás de Aquino e muitos outros). Devidamente valorizada, tem uma grande utilidade social. Fosse isso mentira, a ditadura militar brasileira (1964-1985) - como toda ditadura, sempre preocupada em abortar toda via de reflexão profunda que possa conduzir os indivíduos rumo à um questionamento do status quo - não teria **perseguido justamente a "inútil" filosofia. Numa democracia, onde as opiniões circulam e fluem mais livremente, a filosofia pode ter, inclusive na escola, um papel de suma importância: estimular os homens à se libertarem de suas amarras internas. Amarras que, atreladas à discursos prontos e superficiais, nos impõem uma visão de mundo muito limitada.

* Platão faz do seu mestre, Sócrates, o principal personagem de A República, narrada em forma de diálogo. Portanto, "quem fala" sobre o tema em questão é o personagem Sócrates, que dialoga com outros personagens (Céfalo, Polemarco, Adimanto, Trasímaco, Gláucon...). É Sócrates quem, no diálogo, representa as idéias de Platão, autor da obra.
** Com o golpe de 64, a filosofia e a sociologia foram banidas do ensino médio. Além disso, muitos professores universitários de filosofia foram perseguidos pelo regime militar; é o caso, por exemplo, do já falecido filósofo Bento Prado Jr., professor de filosofia (USP) de 1961 até 1969, quando - cassado pelo AI-5 - foi impedido de prosseguir lecionando. Dentre os estudantes universitários que, durante a ditadura, foram perseguidos pela repressão, muitos faziam filosofia. O frade dominicano Tito de Alencar, estudante de filosofia da USP, sofreu, na prisão, torturas das quais jamais se recuperou psicologicamente. Já exilado na França, mas ainda perturbado com a experiência, suicidou-se em 1974. Sua história é contada no livro Batismo de Sangue, de Frei Betto, que foi adaptada ao cinema. Vale ainda, para reiterar a tese de que a filosofia pode suscitar - naqueles que se dedicam à ela - uma postura crítica e combativa diante de toda e qualquer conjuntura opressiva, citar o confronto entre os estudantes de filosofia da USP e estudantes do Mackenzie, na rua Maria Antonia (03/10/1968). Enquanto aqueles se punham contra o regime militar, estes eram favoráveis à ele.

Rafael Issa é graduando em Filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e formado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).