sexta-feira, 23 de julho de 2010

Filosofia Patrística: seu início e desenvolvimento


Abordarei a partir deste post temas relacionados a Filosofia medieval, com o intuito de esclarecer e colaborar com aqueles que vêem neste blog uma fonte de pesquisa e informação.
O que se pode entender como patrística ou período patrístico?
Segundo Saranyana, em seu livro A Filosofia Medieval o período patrístico é caracterizado pelo “lapso de quase sete séculos compreendido entre a morte do último dos apóstolos de Jesus Cristo – ocorrida por volta do ano 100 de nossa era – e o começo da Idade Média.” (p. 25). Ainda segundo ele, o surgimento deste período está vinculado ás últimas manifestações da filosofia antiga, como o platonismo e o neo-platonismo e as primeiras manifestações filosóficas feitas por pensadores cristãos. Esta vinculação explica, portanto, as influências que tais pensadores principalmente Platão e Plotino, tinham sobre as filosofia de Santo Agostinho, por exemplo.

Entretanto, para que um pensador fosse considerado um “padre da Igreja”, isto é pertencente a filosofia praticada neste período, a Igreja católica se utilizou de quatro características essenciais para que um pensador cristão, na sua maioria sacerdotes, fosse considerado como tal. Tais características são:

  1. ortodoxia na doutrina católica: As reflexões elaboradas deveriam estar em conformidade com os principais dogmas católicos como: a presença real de Cristo na Eucaristia e a sua ressurreição.

  2. Santidade de vida: Tais pensadores, mesmo os que não fossem sacerdotes, além da importante reflexão devem, segundo a Igreja, não ter contraído o matrimônio.

  3. Reconhecimento ou aprovação por parte da Igreja Católica;

  4. Antiguidade.
O período patrístico, segundo Saranyana, é dividido em três partes:
a) do início do séc. II até o Concílio Ecumênico de Nicéia (ano 325)
Porque esta primeira parte do período patrístico encerra-se com este concílio? Trataremos, primeiramente, o porque de sua convocação e suas conseqüências. Um concílio é convocado para reafirmar a unidade do ensinamento da Igreja em todo o mundo e, combater doutrinas que surgem e que aparentemente, isto é sem um estudo aprofundado, tenham semelhança doutrinária.
O concílio de Nicéia teve como objetivo combater a doutrina do arianismo – que será abordado posteriormente neste blog – espalhadas pelo presbítero Ário onde afirmava que Cristo não seria “estritamente humano nem estritamente divino” (Saranyana, p. 60). Este concílio foi convocado pelo Imperador Constantino o que não invalida o mesmo, pois, um concílio que reúne-se para reafirmar a fé passada pelo apóstolos através da tradição, e que estabelece dogmas só é aprovado após a aprovação papal.
Imagem representando o concílio de Nicéia, importante notar que ao centro não se encontra o papa, mas a imagem do Imperador Constantino que convocou o concílio. Como dito anteriormente, o fato de ser convocado pelo Imperador em nada altera a autoridade dogmática do mesmo, pois este só é válido após a autorização do Papa.

Antes deste concílio tais idéias espalhadas pelo presbítero Ário não tinham tanta força e influência, assim a convocação do concílio pelo Imperador Constantino deve-se ao fato de que as idéias arianas estavam distorcendo a imagem de Jesus Cristo perante os Cristãos, principalmente os recém convertidos. Este concílio portanto, inicia uma nova etapa dentro da filosofia patrística pois, com a promulgação do dogma da consubstancialidade do Pai e do Filho, foi a partir desta confirmação e das batalhas coma arianismo, que muitos pensadores contribuíram – e muito - para o pensamento cristão filosófico da época.
No próximo post, refletiremos sobre a etapa intermediária do período patrístico, que inicia-se com o concílio de Nicéia e termina com a queda do Império Romano do Ocidente em 476. Falaremos dos principais pensadores deste período e sobre a queda do Império, com suas causas e consequências.


quarta-feira, 14 de julho de 2010

A Doutrina Cristã - Comentário sobre o prólogo da obra de S. Agostinho


A intenção de Agostinho na obra acima é determinar normas para a correta interpretação das Escrituras. Entretanto, tais normas não serão bem compreendidas por todos, isto é, somente os que desejam realmente compreender os Livros Sagrados e progredir espiritualmente através desta compreensão é que terão êxito neste caminho. Haverá, no decurso deste caminho aqueles que, ao contrário dos bem sucedidos, não conseguirão compreender tais normas determinadas pelo Bispo de Hipona e que certamente irão, como ele mesmo destaca, “contestar” tais normas e consequentemente tecer críticas ao trabalho de Agostinho. No entanto, antes de verificarmos a resposta de Agostinho as críticas, procurarei destacar o fundamento que a própria Escritura fornece ao nosso autor para este estabelecer normas para se compreendê-la corretamente.
Encontramos o fundamento de Agostinho na segunda carta de S.Pedro, onde ele afirma: “Deveis saber isto antes de tudo: nenhuma profecia é assunto de interpretação pessoal (grifo meu), porque de uma vontade humana jamais veio uma profecia, mas, sim, homens movidos pelo Espírito Santo é que falaram da parte de Deus.” (II Pd 1, 20-21).
Sendo assim quem deve interpretar as Escrituras?
Aqueles que foram escolhidos por Jesus Cristo para divulgar suas palavras ao mundo inteiro: em primeiro lugar os doze apóstolos e, através da imposição de mãos destes mesmos se tornariam também apóstolos de Cristo – Padres e Bispos – dentre eles o próprio Agostinho.
São três os possíveis contestadores do trabalho de Agostinho:
a) Os que não entendem: A estes Agostinho nada pode fazer, restando-lhes apenas pedir a Deus que lhes “ilumine” (alusão a sua doutrina da iluminação) pois, segundo ele o entendimento de tais conhecimentos só são possíveis através da misericórdia divina.
O que seria, no entanto, a doutrina da iluminação agostiniana?
Em sua obra Solilóquios, Agostinho define qual é a luz que ilumina o pensamento do homem(I VI,12). Podemos afirmar que primeiramente esta doutrina afirma que da mesma maneira que o olho, para enxergar os corpos necessita da luz; o pensamento para encontrar a verdade necessita também de uma luz. Entretanto, da mesma forma que a luz do sol permite enxergar os corpos, Deus é a fonte da luz que permite ao pensamento encontrar a verdade. Agostinho formula tal doutrina baseado nas idéias platônicas, onde a idéia do bem ilumina todas as idéias inteligíveis. Além disso, Agostinho aproveita de tal doutrina platônica que tal luz é o princípio de tudo e causa da existência de todas as coisas e juntamente com a inspiração divina do Evangelho de S. João, cria sua doutrina estabelecendo que Deus é a fonte de todo conhecimento.
Dessa forma, a doutrina da iluminação separa o que é inteligível por si e que ilumina a tudo e o que é iluminado e inteligível por outro. (Solilóquios I,8,15). Tal doutrina é uma metáfora, onde ele a utiliza para demonstrar que Deus é essencialmente e verdadeiramente a luz que ilumina a tudo e todos; o sol e sua luz são demonstrados em sentido figurado, porém não transmitem e nem possuem o que seja verdadeiramente a luz. Segundo Gilson a dificuldade desta doutrina é definir o que compete a Deus e ao homem no ato do conhecimento (GILSON, 164). O homem, ainda segundo ele, de acordo com esta doutrina possui um intelecto independente de Deus, ou seja, Agostinho faz questão de separar o intelecto de Deus do intelecto humano que é iluminado pelo intelecto divino. Definidos assim o que seja um e outro, tal dificuldade encontra-se superada.
 O pensamento humano é caracterizado por Gilson como luz natural (GILSON, 166), definição não dada por Agostinho porém não distorce seu pensamento. Essa luz recebe outra luz maior mostrando que a verdade não é fruto de algo sobrenatural, pelo contrário, ela é uma característica do intelecto humano, único capaz de receber tal iluminação. Nosso intelecto e sua luz natural em nada se misturam com a ordem sobrenatural, todas elas foram criadas por Deus, portanto, estes agem de acordo com a natureza humana. A ação da iluminação é, para Gilson, de justamente ajudar o intelecto a pensar a verdade, uma iluminação presente a todos os homens em qualquer momento.
b) Os que entenderam, mas ao aplicar o conhecimento não conseguem desvendar as obscuridades das Escrituras: Estes irão considerar o trabalho de Agostinho ineficaz e sem valor e o que é pior, irão afirmar a outros que tal empresa de Agostinho não irá servir a ninguém.
c) “Os iluminados”, ou seja, aqueles que acreditam que receberam o dom de Deus para interpretar as Escrituras sem seguir as normas que Agostinho irá determinar: A estes que se julgam “escolhidos por Deus”, e portanto, consideram as normas agostinianas supérfluas, Agostinho faz questão de destacar que por mais “especiais” que sejam, tiveram em alguma parte da vida que aprender pelo menos o alfabeto, isto é, seja qual for o dom recebido jamais deve-se esquecer que não se faz nada sozinho ou sem a ajuda de outros. A resposta de Agostinho baseia-se em três fatos onde homens importantes e de valor, ainda assim eram necessitados de instrução para que pudessem colocar seus dons a serviço.
Assim, vemos que S. Agostinho possui consigo uma autoridade que não foi usurpada nem tão pouco auto-atribuída , mas sim, designada pelo próprio Cristo por meio de seus apóstolos.
Logo em seguida Agostinho trata do valor da mediação humana, por perceber que muitos dos que se auto-intitulavam “inspirados” por Deus para interpretar as Escrituras não aceitavam qualquer tipo de instrução humana. Desta forma, Agostinho ressalta a importância do homem no projeto de Deus para o mundo, destacando – mais uma vez – exemplos retirados das próprias Escrituras como a conversão de Paulo (At 9,3-7) e a instrução de Pedro a Cornélio (At 10,1-48)para ratificar aquilo que a Escritura ensina que o “O templo de Deus é santo e esse templo sois vós” (1 Cor 3,17), ou seja, se o corpo do homem é o templo do Espírito Santo (1 Cor 6,19) este não pode – e nem deve - ser apenas um coadjuvante na história da Salvação do homem por Deus, mas sim que Deus torna-o também protagonista neste papel.
A humildade, portanto, deve ser uma característica de todo aquele que examina as Escrituras, pois, da mesma forma como ensina a outros que não compreendem, ele também é ensinado, por mais “iluminado” que seja em algum momento de sua vida, não sendo possível uma auto erudição.